A responsabilidade pós-contratual em M&A

A responsabilidade pós-contratual em M&A

“Não se deve ignorar a presença de deveres de conduta na fase posterior à efetivação da fusão ou aquisição”

Recentemente, ao comentar sobre a venda de uma parte do seu bem-sucedido grupo de restaurantes, conhecida personagem do mundo da gastronomia afirmou a um jornal que o estilo dos estabelecimentos gastronômicos que havia vendido estava ultrapassado em relação à atual cena gastronômica. Outras declarações igualmente pouco elogiosas foram feitas na entrevista.

Em outro caso, o fundador e ex-sócio de um grupo educacional cuja marca leva o seu nome envolveu-se em polêmicos eventos político-partidários que o tornaram alvo de investigações. A repercussão negativa na mídia e nas redes sociais levou o comprador e atual dono da marca a se manifestar publicamente, para esclarecer que o controle do grupo educacional havia sido transferido a ele e que a marca e o grupo já não tinham qualquer relação com o antigo fundador.

Os exemplos narrados ilustram uma situação não incomum nas operações de fusão e aquisição: comprador ou vendedor, em momento posterior à conclusão da transação, acreditando não estar vinculado a nenhuma outra obrigação além daquelas textualmente pactuadas, adota comportamento que diminui os benefícios ou agrava os prejuízos esperados pela contraparte com determinada aquisição.

No direito brasileiro não se duvida da existência da figura da responsabilidade contratual. O contratante descumpridor das obrigações do contrato em vigor deve reparar o dano causado à outra parte. Também não se nega a presença do dever de indenizar para aquele que, na fase que antecede a assinatura dos documentos definitivos, por exemplo frustra a legítima expectativa depositada pela contraparte naquele determinado negócio ao romper unilateral e abruptamente as tratativas, ou divulgar informações sigilosas obtidas em confiança. É a chamada responsabilidade pré-contratual.

Não se deve ignorar a presença de deveres de conduta na fase posterior à efetivação da fusão ou aquisição

Pouco se fala, porém, da responsabilidade pós-contratual. O assunto não é inédito no Brasil. Apesar disso, conhece a timidez da jurisprudência e da doutrina: a literatura jurídica no tema é pontual, e os julgados, escassos (por ex., Apelação Cível nº 588042580 do TJ-RS; e Recurso Especial nº 1387236/MS do STJ).

A ideia por trás dessa modalidade de responsabilidade é que, mesmo com a extinção da relação contratual e das obrigações devidas de parte a parte, ex-contratantes continuam sujeitos a respeitar deveres de proteção, informação e lealdade. Coloca-se em jogo aqui o respeito à confiança e a expectativa de que os negócios não sejam meras operações formais, em uma correspondência literal e abstrata ao que está no contrato. Quem celebra um contrato, busca satisfazer determinada necessidade ou objetivo em concreto. Não é porque o contrato se extinguiu que passa a ser permitido à contraparte se comportar a seu bel-prazer, atrapalhando a satisfação dessa necessidade ou objetivo do seu ex-parceiro de contrato.

Esses deveres se manifestam de diversas formas. O dever de lealdade é encarnado na obrigação de não praticar ato capaz de frustrar os fins perseguidos com o contrato, ou de reduzir a utilidade e os benefícios esperados com o negócio. Também se inserem nessa categoria os deveres de sigilo e de não concorrência.

Há também o dever de informação. Cabe ao vendedor prestar esclarecimentos e fornecer documentos (operacionais, financeiros, jurídicos etc) da sociedade que não tenham sido disponibilizados ou identificados anteriormente e que se façam importantes para o comprador conduzir os negócios sob as mesmas condições que existiam para o vendedor.

Não é necessário que tais deveres estejam em contrato. Eles devem ser observados mesmo que não previstos expressamente, porque decorrem de lei. Sua porta de entrada no direito brasileiro é o princípio da boa-fé objetiva (artigos 422 e 187 do Código Civil).

A inobservância desses deveres pode gerar obrigação de indenizar eventuais prejuízos causados pelo comportamento faltoso do ex-contratante – há inclusive aqueles que professam o desfazimento do contrato (resolução) e a volta das partes à situação anterior à sua assinatura. Nos dois casos práticos mencionados no início desse artigo, não parece improvável que a opinião desabonadora emitida por eminente figura do mundo da gastronomia influencie negativamente atuais e potenciais clientes, afastando-os dos restaurantes criticados. É igualmente factível que a névoa de politização que venha a pairar sobre a marca de um grupo educacional acabe por desagradar parte da clientela com visão política oposta.

Não se deve ignorar, portanto, a presença de deveres de conduta na fase posterior à efetivação da fusão ou aquisição. Agentes econômicos precisam estar sensíveis ao fato de que o fim de um contrato não significa uma permissão irrestrita e incondicionada para praticarem atos potencialmente violadores do direito de um ex-parceiro contratual – ainda que estejam fazendo pleno uso de sua liberdade, recobrada após terem cumprido a sua parte no negócio.

Assessores jurídicos também precisam estar dispostos a orientar seus clientes a respeito das consequências da prática de condutas contrárias a tais deveres, e até mesmo a estipular em contrato regras de comportamento pós-transação que vão além do óbvio (tais como as corriqueiras obrigações de não concorrência, sigilo e não aliciamento).

Por Rafael Setoguti Julio Pereira

Fonte: https://valor.globo.com/legislacao/coluna/a-responsabilidade-pos-contratual-em-m-a.ghtml

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