Sociedade em Conta de Participação e seus reflexos tributários

Sociedade em Conta de Participação e seus reflexos tributários

“Reflexos tributários da utilização da sociedade em conta de participação em operações empresariais complexas”

Apesar de ser velha conhecida do direito privado brasileiro, estando prevista nos artigos 325 a 328 do Código Comercial do Império, a utilização da sociedade em conta de participação no direito brasileiro tem sido cada vez mais frequente apenas nos últimos anos.[1]

O aumento das Sociedade em Conta de Participação (SCP) tem levantado discussões bastante interessantes no direito tributário brasileiro. Ainda que existam muitas dúvidas e questionamentos sobre os efeitos e o alcance da SCP nas obrigações fiscais, em especial com relação às obrigações acessórias, certo é que o direito tributário não ficou imune a esta forma de organização empresarial.[2]

O Conselho de Administração de Recursos Fiscais (CARF) também foi chamado a analisar alguns casos envolvendo a utilização de SCP e seus efeitos tributários. Na maioria dos casos, a autoridade fiscal autuava a SCP sob a alegação de que a forma societária escolhida deveria ser desconsiderada tendo em vista a natureza da relação entre os sócios ostensivo e participante. Em muitos casos, houve ainda a alegação de simulação ou fraude, com o intuito de redução dos tributos devidos tanto pelas pessoas físicas envolvidas, especialmente considerados os impostos incidentes sobre a renda e as contribuições previdenciárias.

Em caso recente, o CARF analisou uma SCP formada entre uma empresa prestadora de serviços educacionais – como sócia ostensiva – e os professores que, em alguns casos, prestavam serviços – como sócios participantes. A autuação, em linhas gerais, usou como fundamento que a forma escolhida tinha como única finalidade a redução dos tributos devidos e pretendia a sua desconsideração, com a tributação dos valores recebidos pelo imposto de renda e as respectivas contribuições previdenciárias.

Na compreensão do voto vencido, os sócios participantes não poderiam prestar seus serviços à sociedade, sob pena de esta ser sumariamente descaracterizada a SCP e caracterizada a remuneração por prestação de serviços, com todas as consequências fiscais daí advindas. Consta da fundamentação:

Vejam que, além de não oferecer à tributação a totalidade de suas receitas, ainda distorcia toda a reduzida legislação que rege o instituto das sociedades em conta de participação, uma vez que os sócios participantes (professores especialistas) das SCP constituídas prestaram, na realidade, serviços ao sócio ostensivo, devendo os valores pagos por este, no âmbito desses contratos, ser classificados segundo a sua efetiva natureza jurídica, como remuneração de prestação de serviços, que corresponde à verdade material dos fatos, e não como lucros isentos de tributação, conforme corretamente constatado na decisão recorrida.

No entanto, o Conselho – por maioria de votos – entendeu que a forma societária para esse tipo de mercado está de acordo com as finalidades legais e não deve ser desconsiderada. O argumento de que os professores – e sócios participantes – não poderiam prestar serviços para o sócio ostensivo não foi reconhecido pelo Conselho, que deu provimento integral ao recurso do contribuinte. Como bem notou o voto vencedor, “não existe vedação à participação do sócio participante nas atividades empresariais. O que existe, é uma consequência jurídica à sua participação, passando a responder solidariamente pelas obrigações em que intervier.” (Acórdão 1401­002.823)

Esse ponto merece análise detida. Com efeito, de um lado, o legislador estabeleceu uma regra geral no caput do artigo 991 do Código Civil, determinando que a “atividade constitutiva do objeto social é exercida unicamente pelo sócio ostensivo”, pela qual se obriga e se responsabilidade. De outro lado, no entanto, o mesmo legislador estabeleceu uma exceção à regra geral, no parágrafo único do artigo 993, segundo a qual “o sócio participante não pode tomar parte nas relações do sócio ostensivo com terceiros, sob pena de responder solidariamente com este pelas obrigações em que intervier.”

Nesse caso, o legislador estatuiu uma regra geral e, ao mesmo tempo, os casos nos quais se estará diante da exceção àquela regra geral. Dessa forma, não pode o intérprete, sob pena de negar a própria legislação, desconsiderar os casos nos quais se está diante da exceção legal expressamente prevista.

Em outras palavras, o Código Civil elenca exaustivamente os fatos em presença dos quais se produz a consequência jurídica da regra geral – responsabilização individual do sócio ostensivo – quanto prevê as eventuais exceções na hipótese de a regra não ser aplicável – responsabilização dos sócios participantes nos casos em que atuarem no objeto social perante terceiros.

No entanto, essa previsão faz mais do que apenas regular as responsabilidades dos sócios participantes: ao prever a responsabilidade dos sócios participantes ele está, expressamente, permitindo a atuação dos sócios participantes no objeto social da sociedade. Nesse caso, utiliza-se a técnica do argumento a contrario, na sua variante produtiva. Esta técnica de interpretação permite que se reconstrua “uma norma não expressa que também regula o caso que não está literalmente previsto”.[3]

Assim, quando o legislador estabelece a exceção de que o sócio participante poderá ser responsabilizado no caso em que atuar em nome da sociedade, ele está automática e necessariamente “criando” uma norma implícita que permite a atuação do sócio participante no objeto social da SCP.

Assim, pode-se facilmente constatar que o legislador pretendeu regular por meio da regra excepcional os casos nos quais os sócios participantes atuarem em nome da sociedade em conta de participação. Sobre isso não devem restar quaisquer dúvidas. Alegar, como o fez a autoridade fazendária, que ao sócio participante é vedado atuar em nome da sociedade ou em seu benefício, ou, ainda, concretizando o seu objeto social, é, a um só tempo, contrariar a própria natureza dos empreendimentos empresariais complexos e a previsão da legislação sob o influxo da interpretação a contrario.

Em outros dizeres, a estrutura normativa presente no Código Civil demonstra que o próprio  no qual os dispositivos estão inseridos, portanto, demonstra que o próprio legislador reconheceu que existem situações nas quais a regra geral – atuação e responsabilização exclusivas do sócio ostensivo – não poderia ser aplicada, prevendo por meio de uma exceção as consequências que deveriam surgir no caso de não aplicabilidade da regra geral – atuação e responsabilização dos sócios participantes quando estes atuarem perante terceiros. Como notou o redator do voto vencedor, “a cláusula não é impeditiva, mas sim de ampliação da responsabilidade do sócio participante nos casos em que participe diretamente da atividade operacional”.

Para concluir, faz-se nova referência ao voto vencedor, na parcela que reconhece que as organizações societárias e empresariais modernas são complexas e inovadoras, e que, exatamente em razão disso, a administração tributária deve acompanhar o seu desenvolvimento:

“Salta aos olhos o modelo de negócios inovador implementado pela empresa, ainda mais no momento em que tais atividades iniciaram. A administração pública não pode ignorar ou engessar suas interpretações sem levar em consideração o dinamismo e a evolução das relações empresariais”.

[1] Sobre o assunto, veja-se: SCALZILLI, João Pedro, SPINELLI, Luis Felipe. Sociedade em Conta de Participação. São Paulo: Quartier Latin, 2019.

[2] Veja-se, por todos, o recente trabalho de FERNANDES, Fabiana Carsoni. A Sociedade em Conta de Participação no Direito Tributário. São Paulo: IBDT, 2021.

[3] GUASTINI, Riccardo. L’Interpretazione dei Documenti Normativi. Milão: Giuffrè, 2004. p. 153.

Por Pedro Adamy

Fonte: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-do-carf/sociedade-em-conta-de-participacao-e-seus-reflexos-tributarios-15062021

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