Contrato virtual e assinatura digital
“Documento é um título executivo extrajudicial mesmo sem a assinatura de duas testemunhas?”
Para ser considerado um título executivo extrajudicial, o documento particular deve ser assinado pelo devedor e por duas testemunhas. Contudo, decisões judiciais recentes têm flexibilizado essa regra em casos excepcionais, como, por exemplo, quando o documento é assinado digitalmente pelas partes – o que, segundo julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ), seria suficiente para “comprovar a autenticidade e presencialidade do contratante”.
Esse entendimento, contudo, não é pacífico e enfrenta resistência por parte de alguns Tribunais de Justiça, que também têm se debruçado sobre a distinção entre assinaturas eletrônica e digital.
O artigo 784, inciso III, do Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/15) dispõe ser título executivo extrajudicial “o documento particular assinado pelo devedor e por 2 (duas) testemunhas”. Entendeu o legislador que essa seria uma forma de garantir a higidez da manifestação de vontade das partes contratantes, que poderiam ser chamadas a testemunhar caso o devedor alegasse algum vício de vontade em sua defesa.
Essa regra, todavia, não é absoluta. Em situações excepcionais, o STJ conferiu eficácia executiva ao instrumento particular não assinado por duas testemunhas, tendo aferido a existência e validade do negócio jurídico de outras formas.
Por exemplo, ao julgar o Resp nº 112.335/MT, a 4ª Turma do STJ reconheceu a validade de instrumento de confissão de dívida não assinado por duas testemunhas por entender que (i) tal exigência “fica suprida pela firma de pessoas que assinam o contrato, na qualidade de avalistas, em negócio que dispensa tal espécie de garantia” e (ii) os devedores não contestaram a existência ou validade do instrumento de confissão de dívida.
Em 2018, a 3ª Turma do STJ deparou-se com outra dessas situações excepcionais e decidiu, de maneira aparentemente inédita, ser possível a concessão de eficácia executiva a contrato virtual assinado digitalmente pelos contratantes, mas desprovido das assinaturas de duas testemunhas.
E assim o fez confirmando que, não obstante o rol de títulos executivos extrajudiciais ser taxativo (artigo 784, do Código de Processo Civil), deve-se considerar a “nova realidade comercial com o intenso intercâmbio de bens e serviços em sede virtual”. E, sendo a assinatura digital de contrato eletrônico capaz de assegurar a “autenticidade e presencialidade do contratante”, restaria suprida a ausência das assinaturas das testemunhas (REsp nº 1495920/DF).
Nesse último caso decidido pelo STJ, o contrato de mútuo havia sido celebrado pelas partes em ambiente eletrônico, sem a presença de testemunhas, o que, em tese, inviabilizaria a constituição de um título executivo extrajudicial.
Todavia, o STJ considerou que a aposição de assinatura digital pelos contratantes conferiu alto grau de segurança e autenticidade ao negócio jurídico, equiparável à própria assinatura de testemunhas.
Isso porque a assinatura digital conta com um processo de certificação que envolve algoritmos e sistemas de chaves criptografadas, bem como a chancela de uma autoridade certificadora licenciada pelo Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, principal autoridade da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), nos termos da Medida Provisória 2.200-2/2001.
E todos esses controles conferem à assinatura digital um elevado nível de segurança de que, de acordo com o STJ, “determinado usuário de certa assinatura a utilizara e, assim, está efetivamente a firmar o documento eletrônico e a garantir serem os mesmos os dados do documento assinado que estão a ser sigilosamente enviados” (REsp nº 1495920/DF).
A decisão do STJ, mesmo sem força vinculativa, incentivou diferentes Tribunais de Justiça a também conferir eficácia executiva a documentos particulares não assinados por duas testemunhas, desde que assinados digitalmente pelos contratantes. Como exemplo, há julgados dos Tribunais de Justiça dos Estados de São Paulo[1], Rio de Janeiro[2] e Minas Gerais[3].
Contudo, não são todos os Tribunais pátrios que compartilham desse entendimento. Um exemplo claro, considerando-se as decisões mais recentes[4], é o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), segundo o qual a assinatura digital no documento particular serviria tão somente para comprovar a sua autenticidade, não sendo suficiente para suprir a exigência do artigo 784, inciso III, do Código de Processo Civil – muito embora o artigo 1º, da Medida Provisória nº 2.200-2, disponha que a assinatura digital garante “a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica”.
Aliás, em julgado bastante elucidativo, o TJDFT declarou a sua “inequívoca resistência” em relativizar a exigência legal do artigo 784, inciso III, do Código de Processo Civil para conceder executividade a documentos particulares não assinados por duas testemunhas, recomendando “afastar, ao menos neste momento, a conclusão não unânime do STJ no RESp 1.495.920/DF, considerando que a discussão travada no referido precedente é incipiente na Corte Superior, senão inédita” (Apelação Cível nº 0704256-31.2018.8.07.0005).
Independentemente do entendimento do TJDFT, um ponto essencial na decisão do STJ foi a aferição de regularidade do negócio jurídico pela aposição de assinatura digital pelas partes contratantes, o que não se confunde com assinatura eletrônica.
Com efeito, a jurisprudência tem distinguido assinatura digital (espécie) e assinatura eletrônica (gênero). Conforme já afirmou o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, “entende-se por assinatura eletrônica qualquer método de assinatura de um documento eletrônico com o fim de conseguir identificar o autor”, enquanto a assinatura digital “está jungida a balizas mais restritas, uma vez que depende da criptografia de chave pública para acrescentar à transmissão um sinal identificador (selo, marca, timbre) que permite ao receptor comprovar que a integridade dos dados enviados está protegida” (Apelação Cível nº 1011898-10.2016.8.26.0009).
Atentando para essa diferenciação e os respectivos níveis de segurança de cada tipo de assinatura, o Tribunal de Justiça do Estado do Sergipe decidiu, ao julgar a Apelação Cível nº 0046876-13.2018.8.25.0001, que não basta as partes celebrarem contrato virtual validado por aposição de usuário e senha pessoais (login) em sistema eletrônico de um dos contratantes – o que configuraria uma assinatura eletrônica.
Faz-se necessário um grau maior de “certeza do negócio jurídico entabulado” para que o documento seja considerado um título executivo extrajudicial, o que se daria por meio das assinaturas de duas testemunhas (hipótese legal) ou pela assinatura digital e suas respectivas medidas de controle.
Esse julgado, contudo, levanta uma questão relevante. Segundo o artigo 10, § 2º, da Medida Provisória nº 2.200-2, as partes podem pactuar, de comum acordo, “outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil”.
Assim, em princípio, as partes poderiam acordar contratualmente que a assinatura eletrônica simples, sem as formalidades inerentes à assinatura digital, seria suficiente para garantir a “autoria e integridade” do documento virtual, e argumentar que tal providência bastaria para conferir força executiva ao documento, nos termos do artigo 10, § 2º, da Medida Provisória nº 2.200-2.
Em uma situação semelhante, na qual a parte questionava assinatura eletrônica aposta no documento particular, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu pela higidez do título executivo extrajudicial e permitiu o prosseguimento da execução por entender que as partes haviam acordado pela validade da referida assinatura eletrônica – tanto que uma das partes já havia se beneficiado dos valores mutuados, não podendo, posteriormente, alegar discordância quanto à eficácia do documento celebrado (Agravo de Instrumento nº 2196934-96.2020.8.26.0000).
Não obstante a permissão do artigo 10, § 2º, da Medida Provisória nº 2.200-2, a maioria das decisões pátrias tem se limitado a aferir se as assinaturas apostas no documento particular consistem em assinaturas digitais válidas, por entender que somente elas – e não as assinaturas eletrônicas – poderiam conferir eficácia executiva ao contrato não assinado por duas testemunhas.
Tanto é assim que, quando a assinatura digital apresenta vícios – como, por exemplo, o descredenciamento da autoridade certificadora junto ao ICP-Brasil –, podendo ser considerada uma simples assinatura eletrônica, tem-se ignorado o disposto no referido § 2º, do artigo 10, da Medida Provisória nº 2.200-2, e concluído pela inexequibilidade do contrato[5].
Em tempos de pandemia e isolamento social, houve um substancial aumento na celebração de contratos virtuais assinados de forma eletrônica. Nessa nova dinâmica tecnológica, que prioriza a praticidade e a rapidez dos negócios jurídicos, os contratantes geralmente optam por remover – ou não têm liberdade de incluir – a assinatura de duas testemunhas no instrumento contratual.
Diante disso, o STJ e demais Tribunais de Justiça pátrios têm cada vez mais relativizado a exigência do artigo 784, inciso III, do Código de Processo Civil, e conferido eficácia executiva a documentos particulares não assinados por duas testemunhas, desde que o instrumento esteja assinado digitalmente pelos contratantes.
Esse entendimento, contudo, não é pacífico e, por vezes, ignora a alternativa prevista no artigo 10, § 2º, da Medida Provisória nº 2.200-2. Esses pontos parecem merecer atenção, considerando-se a aplicabilidade prática que podem trazer às relações contratuais e os respectivos riscos jurídicos.
[1] Agravo de Instrumento nº 2117164-54.2020.8.26.0000, rel. des. Marco Fábio Morsello, 11ª Câmara de Direito Privado do TJSP, dj. 7.7.2020; e Apelação Cível nº 1000439-04.2019.8.26.0624, rel. des. Elói Estevão Troly, 15ª Câmara de Direito Privado do TJSP, dj. 22.1.2020.
[2] Apelação Cível nº 0016816-16.2014.8.19.0211, rel. des. Cesar Felipe Cury, 11ª Câmara Cível do TJRJ, dj. 23.6.2020
[3] Apelação Cível nº 1.0000.19.042640-3/001, rel. des. José Américo Martins da Costa, 15ª Câmara Cível do TJMG, dj. 03.10.2019
[4] Apelação Cível nº 07126118720198070007, rel. des. Sandoval Oliveira, 2ª Turma Cível do TJDFT, dj. 22.1.2020; Apelação Cível nº 0704256-31.2018.8.07.0005, rel. des. Fábio Eduardo Marques, 7ª Turma Cível do TJDFT, dj. 21.8.2019; e Apelação Cível nº 0734491-56.2019.8.07.0001, rela. desa. Fátima Rafael, 3ª Turma Cível do TJDFT, dj. 10.7.2020.
[5] Apelação Cível nº 1026313-69.2018.8.26.0577, rel. des. Daise Fajardo Nogueira Jacot, 27ª Câmara de Direito Privado do TJSP, dj. 17.12.2019; Apelação Cível nº 2289089-55.2019.8.26.0000, rel. des. Achile Alesina, 14ª Câmara de Direito Privado do TJSP, dj. 23.1.2020; e Apelação Cível nº 1005452-43.2020.8.26.0011, rel. Irineu Fava, 17ª Câmara de Direito Privado do TJSP, dj. 13.1.2021.
Por Bianca Pumar Coelho e Rafael F. Goldstein