A morte do sócio e repercussões nas relações societárias
“Regras de governança devem se ocupar também do planejamento sucessório”
A pandemia de coronavírus trouxe para a pauta jurídica o tema da finitude e seus reflexos em diversas situações, existenciais e patrimoniais, aumentando a visibilidade do planejamento sucessório, instrumento de organização em vida que pode ser utilizado por qualquer pessoa com objetivos múltiplos, dentre eles a melhor alocação dos recursos que integram o patrimônio, a prevenção de litígios entre herdeiros, e a consequente prevenção de dilapidação dos bens a serem futuramente partilhados.
O tema do planejamento sucessório interessa a qualquer pessoa e seus herdeiros. Sem prejuízo, sendo ela participante em algum empreendimento econômico com fins lucrativos, portanto integrando alguma sociedade, interessará também à estrutura societária respectiva, afetando a vida dos sócios remanescentes.
Desta maneira, do ponto de vista de qualquer sociedade, a sucessão causa mortis (uma das causas que ensejam a sucessão societária, embora haja outras) é tema que exige atenção, na medida em que pode haver, com o fato da morte de um sócio, a distribuição da parcela do patrimônio social para terceiros estranhos ao quadro societário. Dependendo da importância da pessoa falecida na administração e no desenvolvimento das atividades pela sociedade, a morte impacta, além do patrimônio, também na rotina organizacional.
O direito empresarial deve então, entre outras tarefas, investigar e buscar solução a situações de sucessão que afetam a sociedade, ou de partes que a integram, ora por mecanismos mais complexos de atos de reorganização societária, ora por meios mais simples referentes à relação entre a sociedade e cada sócio, com previsões para sua eventual substituição em certas situações, inclusive em caso de falecimento.
O planejamento sucessório sob a perspectiva societária deve contemplar diferentes interesses existentes no ato plural da constituição da sociedade, e se concretiza por meio de vários documentos previstos por todos os sócios em conjunto (atos constitutivos, pactos parassociais, e eventualmente documentos auxiliares, conforme o caso), não sendo eficiente a emissão de declarações de vontade por cada sócio, individualmente.
As normas jurídicas referentes aos tipos societários mais comuns previstos no direito brasileiro, isto é, as sociedades limitadas e as sociedades anônimas, foram formuladas em coerência com a perspectiva que aponta as primeiras como estruturas em que há, comparativamente, menor transferibilidade de participações, representadas nas quotas sociais, e as segundas, em que há maior transferibilidade de participações, representadas nas ações.
No planejamento deve ser também considerada a premissa de que, conforme o tipo societário específico, para além da participação existente por meio do aporte financeiro na sociedade, que se inicia com a aquisição do título de participação, a importância das contribuições que cada sócio traz pode alterar, também, o resultado do valor patrimonial da própria sociedade (e, indiretamente de todas as participações dos sócios).
As regras de sucessão societária não dizem respeito apenas à repartição de um patrimônio estático do sócio que faleceu entre seus sucessores pessoais. Pelo contrário, o patrimônio do sócio falecido afeta e é afetado por todas as suas relações patrimoniais, inclusive aqueles de natureza societária.
Ainda que possa haver consenso (o que nem sempre é assegurado) entre herdeiros e sócios quanto à conveniência da simples exclusão da participação respectiva do falecido na sociedade, pode haver conflito de interesses na definição do seu valor patrimonial, isto é, do quantum a ser partilhado. Este conflito pode ser, no mínimo, bilateral (entre os herdeiros e os sócios remanescentes) ou se apresentar em figura poliédrica, apresentando vértices em número equivalente a tantas quantas forem as posições dos herdeiros e dos sócios remanescentes, se distintas.
Além dos problemas estritos de divisão patrimonial, a morte pode também ser causa para bastante instabilidade organizacional. A depender do tamanho da sociedade, suas interações sociais, inclusive através do falecido, o evento da morte pode afetar os negócios de diferentes maneiras. Até mesmo a relação com colaboradores, trabalhadores, parceiros estratégicos e alguns credores pode ser impactada pelo falecimento de determinado sócio, o que também influencia os rumos da empresa.
É possível que diante de parcerias estratégicas, ou diferentes formas de captação de recursos ou financiamento junto a terceiros, credores de uma sociedade tenham tal poder de influência em relação a certas decisões importantes para a administração que afetem seu valor patrimonial e, indiretamente, a parte que cabe a cada um dos sócios. Se a relação com terceiros depender de alguma confiança especial na pessoa do sócio falecido, da sua presença na sociedade, a morte pode influenciar eventuais posições contratuais e o curso dos negócios.
Há, portanto, uma dimensão da morte que se relaciona diretamente com a avaliação do valor do patrimônio da sociedade, que não é estático e, além disso, há também uma dimensão da morte que pode se relacionar com a manutenção da organização da atividade econômica realizada pela sociedade, que em princípio deve ser preservada.
Advogados que atuam em direito empresarial têm por dever atentar para os meios de preservação das atividades empresariais e para a prevenção, ou ao menos a redução, dos conflitos dos sócios (e seus herdeiros) entre si e com a sociedade, e desta junto a terceiros.
As questões societárias podem eventualmente ser atravessadas pela disciplina do direito de sucessões, estabelecida no Código Civil. Por exemplo, caso em uma mesma sociedade já existam parentes com participações pessoais próprias. A figura da empresa familiar, inclusive, é muito comum em empreendimentos (de pequeno e grande porte) no Brasil. Nas hipóteses em que relações familiares e profissionais se misturam, incide, para além do direito societário, toda a matéria referente à eventual distribuição da herança entre os herdeiros, inclusive limites legais impostos pela legítima.
No planejamento sucessório empresarial, que deve contemplar não apenas mas também a matéria do falecimento de um sócio, repercussões tributárias devem igualmente ser consideradas, ante as variações de carga fiscal incidentes conforme as soluções legalmente viáveis possíveis.
Costumam ser levados em conta especialmente os reflexos nos impostos sobre a renda (tanto os individuais da pessoa física dos sócios e dos herdeiros, quanto da pessoa jurídica da sociedade ou de outras pessoas jurídicas constituídas para participação indireta), de transmissão de bens causa mortis ou por doação, por vezes impostos de transmissão de bens imóveis, quando este integram o acervo patrimonial da sociedade.
Em qualquer hipótese, do ponto de vista empresarial, os caminhos possíveis dependem do tipo societário de que participam os sócios que buscam o planejamento. Nas sociedades limitadas, cujo falecimento do sócio em regra conduz à liquidação de sua quota parte (conforme o artigo 1.028 do Código Civil), o planejamento se dá principalmente pelos próprios atos constitutivos, formalizados por meio do Contrato Social.
Apesar da presunção pela liquidação por falecimento na sociedade limitada, pode haver exclusão da quota ou transferência da participação aos sócios remanescentes. Em ambas as hipóteses, as formas de avaliação do patrimônio e de pagamento dos haveres/valor da participação aos herdeiros não estão previstas em lei.
Especialmente em caso de exclusão da quota do falecido, em que a obrigação do pagamento caberá à sociedade. A depender do seu percentual de participação, para que a redução patrimonial causada não acarrete grande instabilidade no caixa, gerando problemas de liquidez ou de solvabilidade com risco de até inviabilizar a continuação das atividades sociais, é importante que os sócios acordem antecipada e preventivamente sobre a matéria, evitando litígios que causam prejuízo patrimonial a todos.
Nas sociedades anônimas, que têm natureza mais de capital, a morte costuma ser menos impactante, mas nem sempre é assim, principalmente naquelas de capital fechado e com estrutura em que há poucos sócios participantes, que empreendem juntos com base em forte confiança pessoal recíproca.
Mas, mesmo nas sociedades anônimas de capital aberto é possível que o grupo de controle também se baseie em confiança pessoal. Além do impacto patrimonial, a morte de um sócio que seja estratégico na composição organizacional, mesmo nas companhias abertas, pode igualmente afetar o curso dos negócios, inclusive em função da alteração no equilíbrio de poderes políticos (de voto) para definição dos rumos empresariais.
Os instrumentos de planejamento podem variar conforme a companhia tenha o capital aberto, isto é, com participações negociadas em bolsa, ou não. Nas companhias abertas, o instrumento adequado para minimizar os riscos da mudança de titularidade das ações para a companhia é o acordo de acionistas (previsto no artigo 118 da Lei das Sociedades por Ações, a LSA), um pacto parassocial usualmente celebrado quando formado o grupo de controle (normalmente na constituição da companhia, mas pode ser feito ou refeito em comum acordo a qualquer momento).
O acordo de acionistas pode estabelecer uma série de mecanismos que evitarão surpresas ou a entrada de elementos estranhos ao grupo de controle da sociedade. Por meio destes mecanismos, genericamente chamados de acordos de bloqueio (que incluem direito de preferência, opção de compra, entre outros), pode-se restringir a livre transmissibilidade das ações vinculadas a terceiros não obrigados contratualmente. Desta maneira, as relações em torno da sociedade ficam mais estáveis, contribuindo para o seguimento das atividades econômicas desenvolvidas, conectando-se com o princípio da preservação da empresa.
Já nas companhias de capital fechado, além do instrumento do acordo de acionistas, a elas igualmente disponível, as regras de bloqueio podem ser estabelecidas no próprio Estatuto, conforme autorizado no artigo 36 da LSA. O dispositivo permite uma limitação mais ampla que a prevista no acordo de acionistas, comparativamente, na medida em que vinculativa para a companhia e todos os acionistas, ainda que a previsão restritiva só possa ser aplicada aos titulares das ações nominativas sob condições específicas, e jamais vedando totalmente a negociação das ações.
Por fim, independentemente do tipo societário, e respectiva disciplina jurídica específica adotada para organização social de qualquer empreendimento econômico, isto é, sociedade limitada ou sociedade anônima, há outros documentos que podem ser produzidos a partir da iniciativa de empreendedores e que podem ter influência na sucessão societária.
No âmbito da família de cada sócio, há a possibilidade da elaboração de um protocolo familiar, ou pacto de família, firmado pelo sócio e seus respectivos parentes. Embora não se possa dispor sobre a distribuição antecipada dos bens, considerando inclusive a vedação ao pacto sucessório no direito brasileiro (conforme o artigo 426 do Código Civil), o protocolo permite antever situações relacionadas ao falecimento e estabilizar expectativas, em benefício não apenas da família, mas também da sociedade de que participa o autor da herança, bem como seus respectivos sócios.
Já entre os sócios, mas não no âmbito societário stricto sensu, há também a possibilidade de assinatura de um memorando de entendimentos. Celebrado com o fim de alinhar possibilidades, normalmente é firmado quando a sociedade se encontra ainda em estágio inicial, ou até mesmo em pré-constituição, mas já com muitas possibilidades alinhadas. Ele pode, inclusive, ser o instrumento de previsão que conduzirá a redação dos protocolos familiares, indicando desdobramentos de questões societárias, e possíveis soluções.
Enfim, no planejamento de qualquer empreendimento econômico que resulte em esforços coletivos, os sócios devem levar em conta uma série de situações, inclusive os riscos relacionados a algum evento de falecimento, e adotar os instrumentos cabíveis, conforme a natureza do empreendimento, respeitando a autonomia patrimonial da sociedade e dos sócios, bem como a disciplina jurídica específica incidente em cada hipótese.