Existe um dever de renegociar?
“Dificuldades do reconhecimento de um dever de renegociar amplo e aplicável a todos os contratos paritários e em todas as situações”
No âmbito dos contratos paritários, poucos assuntos vêm despertando tantas controvérsias na atualidade como o relacionado à existência ou não do dever legal de renegociar. Diante das repercussões da pandemia do coronavírus sobre os contratos, muitos importantes juristas têm se mostrado sensíveis à tese de que o dever de renegociar deveria ser reconhecido de forma ampla, como imposição legal que independeria de previsão contratual.
Sinto-me especialmente motivada a escrever sobre o tema diante das diversas oscilações de opinião que eu própria já tive a respeito dele. Com efeito, minha primeira reação, ao me deparar com o assunto pela primeira vez, foi de desconfiança em relação à existência de um dever legal de renegociar, até diante das dúvidas em relação à sua eficácia prática. Depois, ao ter acesso aos argumentos em favor da tese, fui tornando-me mais simpática e até empolgada com a existência do mencionado dever. Entretanto, na atualidade, após mais um período de reflexão, confesso que estou mais propensa à posição inicial de resistência.
De fato, a pandemia proporcionou-me várias oportunidades para pensar sobre o tema, inclusive por meio da participação em eventos virtuais nos quais o assunto foi discutido por grandes juristas. Por mais que ainda não tenha uma posição totalmente formada sobre o assunto, o qual apresenta muitas nuances e complexidades, reconheço que os argumentos contrários à existência do dever legal de renegociar têm me impressionado bastante, ainda mais se tal dever for visto como aplicável indistintamente a todos os contratos.
Para explicar melhor o meio receio e mapear adequadamente as discussões, é importante ressaltar que o objeto da presente reflexão é o dever legal de renegociar em contratos paritários. Não trato aqui nem de contratos não paritários nem das hipóteses em que o dever é previsto contratualmente. Aliás, parto da premissa de que, caso haja previsão contratual, o dever de renegociar precisa ser reconhecido e assegurado por todos os instrumentos de que dispõe o ordenamento jurídico brasileiro, incluindo a execução específica da obrigação de fazer.
Outra importante advertência é que não discuto que, diante do cenário decorrente da presente pandemia, a renegociação pode ser a melhor solução para resolver a maior parte dos impasses contratuais daí decorrentes. Afinal, considerando que a pandemia impacta de forma distinta os diversos contratos, nem sempre as soluções legais que poderiam ser aplicadas para eventos imprevisíveis ou de força maior serão adequadas para todos os casos.
Considerando que a pandemia já se apresenta como a maior crise econômica desde a Grande Depressão do século passado, é realmente difícil acreditar na eficácia plena de soluções padronizadas, no estilo one size fits all. Consequentemente, a renegociação pode ser a melhor alternativa para assegurar a vontade das partes e levar em consideração todas as suas particularidades e idiossincrasias.
Acresce que a renegociação pode evitar os riscos decorrentes da judicialização de todos os problemas contratuais em uma época tão complexa, seja porque o Poder Judiciário dificilmente conseguirá suportar toda essa demanda em tempo adequado, seja porque, ainda que conseguisse, é grande a probabilidade de decisões que não correspondam às expectativas das partes.
Nesse sentido, são consideráveis as chances de decisões judiciais que adotem uma lógica salomônica, que modifica indevidamente a alocação de riscos estabelecida pelas partes, ou mesmo de decisões divergentes em torno do alcance e dos efeitos dos principais institutos previstos para funcionarem como válvulas de escape para atenuar a rigidez do pacta sunt servanda, tal como a força maior (CC, art. 393), a desproporção das prestações (CC, art. 317) ou a onerosidade excessiva (CC, arts. 478 a 480).
Dessa maneira, diante de uma crise com essa extensão, parece não haver maiores dúvidas no sentido de que soluções voluntariamente negociadas seriam as mais adequadas e mais rápidas. Não sendo possível a renegociação consensual, tudo leva a crer que a segunda melhor alternativa seria a utilização dos métodos extrajudiciais para composição de conflitos, como é o caso da mediação e da conciliação.
Todavia, a questão que ora se coloca não diz respeito às vantagens e à conveniência da renegociação, mas sim se ela pode ser traduzida como dever, a ser imposto coercitivamente contra uma parte que não quer renegociar. Aqui começam efetivamente as controvérsias, especialmente diante do risco de se ver o dever de renegociação como uma espécie de coringa ou “tábua de salvação” para todos os problemas contratuais ou mesmo como um pretexto para justificar o oportunismo da parte que, podendo cumprir o contrato como foi pactuado, aproveita-se da pandemia para obter maiores vantagens.
Como já adiantei, após algumas oscilações, considero que é realmente difícil se pensar na existência de um dever geral de renegociação, que se aplique indistintamente a todos os contratos paritários. Um dos pontos altos para a consolidação da minha atual posição foi um webinar sobre o tema do qual tive a honra de participar, como palestrante, ao lado da eminente Professora Judith Martins-Costa. Trata-se de evento organizado pela ESA no dia 02.06.2020, sob o título “Dever de Renegociar”, que está disponível na internet.
Em fala que deveria ser ouvida por todos os que se interessam sobre o tema, a Professora Judith Martins-Costa sintetizou, naquela oportunidade, com a maestria e o rigor científico que lhes são habituais, todas as razões pelas quais o referido dever legal de renegociar não existe e não pode ser extraído da cláusula geral da boa-fé objetiva. A professora Judith ainda apontou, com muita proficiência, as consequências disfuncionais que poderiam decorrer da consideração deste dever como algo geral, aplicável linearmente a todos os contratos e sem qualquer tipo de critério.
Apontou ainda a professora Judith que parte dos efeitos adversos que poderiam decorrer do reconhecimento de um dever legal de renegociar resulta da inexistência de critérios legais que estabeleçam as balizas, os requisitos e os parâmetros para o exercício do direito a que corresponde o mencionado dever, bem como as consequências da sua violação.
É certo que, do lado contrário, muito se tem falado sobre a questão do equilíbrio contratual, como sendo o verdadeiro fundamento do dever legal de renegociar. Ocorre que se trata de princípio cuja própria existência é bastante controversa, especialmente no contexto de contratos paritários.
Eu, particularmente, entendo que há boas razões para sustentar que tal princípio não existe no âmbito de contratos paritários, seja porque, do ponto de vista jurídico, a autonomia privada tem como contraponto necessário a responsabilidade pelo que foi pactuado – a boa-fé objetiva envolve também o compromisso de cumprir o contrato – , seja porque, do ponto de vista econômico, não há critérios idôneos para identificar o que pode ser considerado como um contrato equilibrado ou não.
Mesmo os diversos indicadores e referências econômicas, assim como o critério dos preços de mercado, são apenas aproximações que ajudam muito mais a identificar contratos excessivamente desequilibrados do que propriamente contratos equilibrados ou com desequilíbrios não tão evidentes. Com efeito, os pontos de partida, as preferências pessoais e os custos de oportunidade de cada parte estão associados a aspectos com alto grau de subjetividade, insuscetíveis de avaliação por terceiros ou mesmo pelo juiz.
Até por essa razão, sempre me pareceu mais coerente, mesmo para aqueles que defendem o dever legal de renegociar, a tentativa de conectá-lo às hipóteses nas quais a própria lei já acena com a possibilidade de revisão ou resolução contratual, de que são exemplos os arts. 317 e 478, do Código Civil. Nesses casos, o dever de renegociar poderia ser visto como uma alternativa à solução mais drástica da resolução ou da revisão pelo juiz.
Com isso, já haveria uma restrição significativa do alcance do dever legal de renegociar, até porque os mencionados dispositivos não se contentam apenas com o fato imprevisível para admitirem a resolução ou revisão do contrato. Na verdade, eles exigem também um desequilíbrio excessivo. Entretanto, mesmo preenchidos tais requisitos, a imposição de um dever geral de renegociar é complicada, já que não se pode considerá-lo como um sucedâneo natural da revisão ou da resolução do contrato por determinação judicial.
Nesse sentido, é importante analisar a experiência francesa, em que o art. 1.195, do Código Civil, alterado em 2016, prevê expressamente a renegociação nas hipóteses de onerosidade excessiva mas, mesmo assim, deixando claro que se trata de uma faculdade da parte que se sentir prejudicada, sem que se imponha à contraparte nenhum dever.
De fato, o mencionado artigo prevê que, diante da mudança imprevisível das circunstâncias com base nas quais o contrato foi celebrado e da onerosidade excessiva para uma das partes que não assumiu expressamente o risco, a parte prejudicada pode requerer a renegociação do contrato, desde que continue cumprindo suas obrigações contratuais durante a renegociação. Se a parte contrária recusar-se a renegociar, as partes podem concordar com a resolução do contrato, na data e nas condições que determinarem, ou pedir de comum acordo ao juiz que proceda à adaptação ou resolução do contrato ou, na falta de acordo, a parte que se considerar prejudicada poderá pedir ao juiz que revise o contrato ou opte pelo seu fim, fixando a data e as condições de como isso deve ocorrer.
O exemplo francês é particularmente interessante, seja por não prever a renegociação como um dever, seja por tentar evitar o oportunismo excessivo da parte que pretende a renegociação por meio da previsão de que a renegociação não é justificativa para a inexecução ou para a mora. Outra constatação importante que se extrai do exemplo francês é a de que a mera previsão legal da renegociação pode não resolver o problema quando não há critérios definidos sobre como ela se dará e quais serão os seus efeitos.
Isso porque, ainda que se ultrapasse a questão da existência de um dever legal de renegociar, muitas perguntas surgem sobre a sua aplicação e alcance, tais como saber se o referido dever é compatível com a espécie e o tipo de contrato de que se trata, assim como saber quando e como o direito respectivo deve ser exercido pela contraparte.
Assim, subsistem inúmeras indagações, tais como: (i) O direito deve ser exercido na primeira oportunidade em que uma das partes constatou a onerosidade excessiva ou o pressuposto que justificaria a renegociação? Quando e como o direito de renegociar poderia ser exercido? (ii) O direito de pedir a renegociação deve ser exercido de forma justificada? Quais são os critérios para o seu exercício? (iii) Em que medida ou em que casos o exercício do direito pode justificar a mora ou a inexecução do contrato? (iv) Quais as obrigações que se impõem à parte que requer a renegociação, considerando que a boa-fé é uma via de mão dupla? (v) O que fazer para conter o oportunismo excessivo da parte que requer a renegociação? (vi) O que fazer quando as partes controvertem sobre a onerosidade excessiva ou o pressuposto do dever de renegociar? Tais questões, que estão longe ser triviais, provavelmente justificariam uma disciplina legal pormenorizada sobre o assunto.
Logo, pode ser bem arriscado enunciar um dever legal de renegociar, aplicável a todos os contratos paritários, sem explicitar os seus pressupostos e requisitos, o que pode ter como consequência o incentivo para o oportunismo excessivo por parte do contratante que invoca o referido dever em seu favor.
A tudo isso, soma-se ainda uma dificuldade reconhecida até mesmo por aqueles que defendem o dever legal de renegociar: a de que se trata de um dever de meio e não de fim. Em outras palavras, o que se quer é que as partes ao menos tentem a renegociação, delas não se exigindo que cheguem a um resultado exitoso. Ocorre que dificilmente se poderá obrigar uma parte que não quer renegociar a fazê-lo substancialmente, havendo mil formas pelas quais um dos contratantes pode entabular uma negociação de maneira protocolar, apenas para se desincumbir formalmente do dever de renegociar.
Verdade seja dita que tais dificuldades não afastam a possibilidade do reconhecimento do dever de renegociar naquelas hipóteses em que, embora na ausência de previsão contratual, o dever decorra do comportamento das partes e da criação de situação de confiança nesse sentido. Partindo das premissas da obrigação como um processo e da boa-fé objetiva como fonte de criação de novos deveres, nada impede que o comportamento das partes a partir de um fato imprevisível, como a pandemia, faça surgir uma nova obrigação não prevista inicialmente no contrato. Entretanto, nesse caso, há que se concordar que a fonte do dever seria contratual e não legal e que, mesmo assim, haveria todas as dificuldades já apontadas, relacionadas ao cumprimento de um dever que é de meio e não de fim.
Essas razões expõem muito brevemente as dificuldades para o reconhecimento do dever legal de renegociar em contratos paritários, especialmente quando se tratem de contratos de troca ou intercâmbio, em que os interesses das partes sejam contrapostos. Isso porque, nesses contratos, a cooperação é mero dever lateral decorrente da boa-fé objetiva e, exatamente por essa razão, não teria o alcance de impor um dever de renegociar.
Mais complexa, entretanto, é a situação dos contratos relacionais, híbridos ou de organização, assim entendidos os acordos em que as partes combinam elementos de mercado (troca) e de empresa (cooperação diferenciada), nos quais os interesses dos contratantes são alinhados em vários pontos e a cooperação, longe de ser mero dever lateral decorrente da boa-fé objetiva, faz parte do próprio objeto do contrato.
Com maior razão, as preocupações estão presentes igualmente nos contratos associativos, que são contratos de empresa comum, em que a cooperação é o próprio objeto do contrato. Não é sem razão que tais contratos são muito próximos aos contratos de sociedade, inclusive no que diz respeito à plurilateralidade, apenas tendo um nível organizacional inferior.
Por isso, é comum que contratos híbridos ou associativos sejam incompletos, pois as próprias partes reconhecem aprioristicamente que não têm como prever todos os aspectos necessários para a manutenção duradoura do seu vínculo diante das modificações supervenientes. Daí porque, em tais contratos, é comum que se substitua a lógica de previsibilidade e segurança pela lógica de adaptabilidade e flexibilidade.
Portanto, ao contrário dos contratos de troca ou intercâmbio, em que a ideia é que o vínculo persista no tempo tal como foi inicialmente pactuado (pacta sunt servanda), nos contratos híbridos ou relacionais, assim como nos contratos associativos, a ideia é que o vínculo persista no tempo a partir de modificações e ajustes.
Por mais que o ideal seja que tais contratos já contenham seus mecanismos de governança, internos ou externos, a questão é saber se, na ausência destes, poder-se-ia cogitar do dever legal de renegociação, mesmo quando o contrato nada previsse a esse respeito.
Parece-me que, em tais contratos, a própria natureza do vínculo abre margem para discussões mais intensas em torno do dever legal de renegociar, já que a sua negação pode impedir que o contrato perca a sua própria razão de ser. De toda sorte, persistem os problemas relacionados aos parâmetros e requisitos para que a contraparte possa exercer o direito respectivo e as dificuldades para se assegurar eficácia prática a um dever que é essencialmente de meio.
Outra discussão problemática diz respeito a contratos de troca e intercâmbio em relação aos quais haja boas razões para questionar as premissas da liberdade de contratar ou mesmo da alocação racional de riscos, tal como apontei em artigo anterior[1]. Entretanto, também em relação a eles, persistem todos os problemas relacionados ao exercício e à efetividade prática do direito correspondente.
De tudo quanto foi exposto, observa-se que, embora a tese do dever legal de renegociar seja bastante sedutora, há consideráveis dificuldades de ordem teórica e prática para a sua aceitação de forma irrestrita. Nesse sentido, o objetivo do presente artigo não foi o de oferecer nenhuma conclusão, mas tão somente compartilhar com o leitor algumas dúvidas e dificuldades, a fim de mostrar que se trata de questão suficientemente complexa, o que nos aconselha a endereçá-la não somente com empolgação, mas sobretudo com prudência.
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[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/liberdade-de-contratar-e-alocacao-de-riscos-10062020