A imprescritibilidade do dano ambiental
“A fixação da tese estende para o futuro, sem limite de tempo, o direito de requerer a reparação civil de um dano ambiental”
No Brasil, não é raro que as decisões mais importantes sejam tomadas quando ninguém está prestando atenção. E, em meio à pandemia da Covid-19, tem sido mesmo difícil acompanhar qualquer tema que não esteja diretamente ligado à doença provocada pelo coronavírus.
Por isso, poucos acompanharam a importante decisão que o Supremo Tribunal Federal (STF) proferiu na madrugada do dia 17 para 18 de abril sobre a chamada imprescritibilidade do dano ambiental.
A fixação da tese estende para o futuro, sem limite de tempo, o direito de requerer a reparação civil de um dano ambiental
Também por conta das medidas de isolamento impostas em decorrência da pandemia, o julgamento no STF ocorreu em sessão virtual, que é uma novidade. Quem acessasse o site do Supremo poderia acompanhar um placar eletrônico indicando os votos dos ministros que, por maioria, fixaram a tese de que “É imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental”. Isso significa dizer que um dano ao meio ambiente pode ter sua reparação, no âmbito civil, requerida a qualquer tempo – mesmo que daqui 20 ou 30 anos. Na prática, era assim que a maior parte das instâncias ordinárias do Poder Judiciário e até do Superior Tribunal de Justiça (STJ) vinha decidindo casos semelhantes; porém, o pronunciamento do STF foi importante para dirimir a questão em torno da imprescritibilidade, que nunca esteve prevista em lei.
Os principais fundamentos que dão suporte à tese da imprescritibilidade nas instâncias ordinárias e no STJ estão relacionados à noção de que danos ambientais, em geral, podem provocar impactos negativos ao longo do tempo e, assim, atingir diversas gerações. Um ambiente degrado, afinal, leva tempo para se regenerar e, algumas vezes, os efeitos negativos da degradação ambiental na saúde e na qualidade de vida das pessoas podem ser desconhecidos a curto prazo.
Por outro lado, vale lembrar que a regra, no direito, é a prescrição. Estão sujeitas a ela assuntos ordinários do dia a dia das pessoas, como a pretensão de cobrança de dívidas. Até mesmo a pretensão punitiva do Estado para o crime de homicídio, em regra, prescreve em 20 anos. Assim, ao menos teoricamente, tudo o que representasse uma exceção à regra da prescrição deveria ser expressamente declarado como imprescritível, como é o caso do crime de racismo (art. 5º, inciso XLII da Constituição Federal).
Por isso, a decisão do STF em si também é polêmica, pois havia a expectativa de que a Corte fosse mais conservadora com relação à necessidade de lei para dispor expressamente sobre a imprescritibilidade. Importante salientar que as razões de decidir e os fundamentos de cada ministro apenas serão conhecidos quando a íntegra do acórdão for divulgada (vale lembrar que, no caso do julgamento da constitucionalidade do Código Florestal, essa divulgação levou cerca de um ano). Essa foi mais uma peculiaridade dessa importante decisão já que, nos julgamentos em plenário tradicionais, o teor dos votos seria prontamente acessível, com cada ministro proferindo seu entendimento oralmente e ao vivo.
Quando o inteiro teor da decisão for divulgado, a comunidade jurídica, especialmente a de direito ambiental, conseguirá analisar melhor a extensão e a interpretação da tese fixada. Há ainda perguntas a serem respondidas, como, por exemplo, qual será considerado o marco inicial da imprescritibilidade? Até quando alguém pode voltar no passado para requerer a reparação civil de um dano ambiental?
Por ora, o que se pode afirmar é que a fixação da tese estende para o futuro, sem limite de tempo, o direito de requerer a reparação civil de um dano ambiental. Como já foi esclarecido, a principal lógica por trás desse entendimento é que o dano ambiental pode ter efeitos ao longo do tempo, alcançando diversas gerações ou, ainda, que há situações em que eventuais efeitos negativos do impacto ambiental não controlado, hoje desconhecidos, só sejam conhecidos no futuro.
Outra certeza é a de que, no Brasil, a legislação ambiental e a sua aplicação continuam sendo rigorosas. Afinal, até homicídio prescreve, mas a pretensão de reparação civil do dano ambiental, não. No mais, as regras de prescrição, em tese, estão mantidas para os desdobramentos penal (crimes ambientais) e administrativo (sanções como advertências, embargos e multas) da responsabilidade jurídica ambiental.
A notícia pode não ser positiva para os empreendedores e pessoas que se coloquem no papel de potenciais poluidores – ou seja, que exerçam atividades assim consideradas pela legislação ambiental. A possibilidade de responder civilmente sem limite de tempo futuro por danos ambientais certamente continuará entrando na conta de muitos investidores.
Nesse sentido, é reafirmada a importância das cláusulas contratuais dispondo sobre a responsabilidade civil ambiental das partes, especialmente no caso de aquisição de bens que representem passivo ambiental, e as auditorias legais em operações de fusão e aquisição precisarão redobrar a atenção para irregularidades ambientais. Da mesma forma, as práticas de compliance ambiental devem ser observadas e aprofundadas, inclusive como forma de prevenir os administradores. O lado positivo da decisão do STF é o da segurança jurídica, que permite antever esses riscos e buscar alternativas legais para viabilização do negócio.