Pandemia e o ITCMD… a vida não para

Pandemia e o ITCMD… a vida não para

“Na tentativa de legitimar a cobrança do ITCMD, projetos de lei em São Paulo pretendem alterar a base de cálculo”

Pandemia e ITCMD

O Brasil ocupa o segundo lugar no número de casos (mais de dois milhões) e de óbitos (mais de cem mil) da Covid-19[1] e, nesse doloroso cenário de repentinas e contínuas mortes, a situação se agrava em razão das medidas restritivas adotadas por ocasião da pandemia, tais como a proibição de velórios em locais públicos no município de São Paulo[2] e a obrigatoriedade de caixão lacrado.

Nada obstante o triste contexto, é importante relembrar que, ao mesmo tempo que o evento morte atesta o encerramento da existência da pessoa natural[3], dá nascimento à sucessão, com a necessidade da realização do procedimento de regularização da propriedade por meio do inventário.

Note-se que o inventário, judicial ou extrajudicial, deve ser instaurado no prazo de até 60 (sessenta) dias da abertura da sucessão[4].

Por outro lado, na seara tributária, o óbito também traz consequências: a obrigação de recolher o ITCMD (Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação), imposto de competência estadual e previsto no artigo 155, inciso I da Constituição Federal de 1988 (CF/88) [5].

Dentre tantas questões que envolvem o tema, destacamos que: (i) em alguns casos, ainda que haja o consenso entre os herdeiros, o que autorizaria o procedimento do inventário extrajudicial, é preciso seguir judicialmente (quando há menores envolvidos, por exemplo); (ii) em outra hipótese, ainda que haja o consenso entre os herdeiros e inexista qualquer causa que obrigue à instauração do inventário judicial, entendemos que o valor do imposto exigido pelo estado de São Paulo ofende normas constitucionais e legais, cabendo ao contribuinte recorrer ao Poder Judiciário.

Isso porque, a competência concedida a cada estado para instituir e regulamentar o ITCMD[6] não representa um “cheque em branco” ao legislador, que tem na matriz constitucional e na lei complementar (no caso, o Código Tributário Nacional – CTN) limites essenciais.

De acordo com o artigo 38 do CTN, a base de cálculo do ITCMD é o valor venal do imóvel, que pode corresponder, em linhas gerais, ao valor lançado para fins do IPTU, no caso de imóvel urbano, e ao lançado para fins do ITR, no caso de imóvel rural, o que foi muito bem observado pela Lei nº 10.705/02[7], que traça as diretrizes do referido imposto no estado de São Paulo.

O Decreto regulamentador (Decreto nº 46.655, de 1º de abril de 2002 – RITCMD/02), todavia, não teve o mesmo cuidado e extrapolou sua função, majorando a base de cálculo do ITCMD definida no CTN e nos artigos 9º e 13 da Lei nº 10.705/02.

O artigo 16 do RITCMD/02 inovou o conceito de valor venal e o definiu como sendo “o valor venal de referência do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis – ITBI”, no caso de bem imóvel urbano, e “o valor médio da terra-nua e das benfeitorias divulgado pela Secretaria de Agricultura e Abastecimento do estado de São Paulo ou por outro órgão de reconhecida idoneidade, vigente à data da ocorrência do fato gerador, quando for constatado que o valor declarado pelo interessado é incompatível com o de mercado”[8], no caso de bem imóvel rural.

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) vem afastando a aplicação do artigo 16 do RITCMD/02 em razão da ausência de lei e, portanto, por ofensa ao princípio da legalidade:

“APELAÇÃO E REMESSA NECESSÁRIA. MANDADO DE SEGURANÇA. TRIBUTÁRIO. ITCMD. BENS IMÓVEIS. Base de cálculo do imposto sobre transmissão causa mortis e doação fixada por lei. Determinação de valor venal de referência do ITBI (para imóveis urbanos), e do valor apurado pelo Instituto de Economia Agrícola (para imóveis rurais), nos termos do que dispõe o Decreto Estadual nº 55.002/09. Alteração de base de cálculo e subsequente majoração de tributo que só podem ser realizadas por meio de lei. Ofensa ao princípio da legalidade, violação ao art. 150, inciso I, da Constituição Federal, e ao art. 97, II, § 1º, do Código Tributário Nacional. Segurança concedida.”[9]

Portanto, a considerar a jurisprudência do TJSP, o contribuinte tem a oportunidade de, antes de esgotado o prazo de 60 (sessenta) dias, buscar respaldo judicial para que no cumprimento da obrigação tributária do ITCMD seja adotado como base de cálculo o valor venal do IPTU ou do ITR.

Este cenário poderá ser alterado pois, no contexto da Covid-19 e na tentativa de legitimar a cobrança do ITCMD no estado de São Paulo, os projetos de lei nº 520/20[10] e 529/20[11] propõem que a base de cálculo do ITCMD seja, no caso de imóvel rural, o valor da terra nua e de imóveis e benfeitorias, divulgado pela Secretaria de Agricultura ou outro órgão idôneo e, no caso de imóvel urbano, o valor utilizado para fins do ITBI.

Em nosso entender, caso sejam aprovados os projetos indicados, ainda assim seria possível questionar a base de cálculo do ITCMD em linha com os precedentes do TJSP sobre o Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) que, no julgamento do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR)Tema 19, reconheceu a ilegitimidade da utilização do valor de referência para fixação da base de cálculo de referido tributo[12].

Tantas são as providências a serem adotadas logo após a morte que a canção reflete exatamente a circunstância: “mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma, até quando o corpo pede um pouco mais de alma, a vida não para”[13].

[1] Dados conforme último Boletim divulgado até a elaboração do artigo. Disponível em: <https://saude.gov.br/images/pdf/2020/August/06/Boletim-epidemiologico-COVID-25-final–1-.pdf>. Boletim Epidemiológico Especial – Doença pelo Coronavírus Covid-19 nº 25 – Semana Epidemiológica 31 (26/07 a 01/08): os Estados Unidos ocupam o primeiro lugar com maior número de casos da doença (4.562.037) e com o maior número de óbitos (153.314) e conforme notícia atualizada divulgada pela Imprensa. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/08/08/100-mil-mortes-pais-celebra-combate-a-covid-com-taxa-que-esconde-realidade.htm>. Acesso em 10 de agosto de 2020.

[2] Artigo 4º do Decreto do Município de São Paulo no. 59.372, de 24 de abril de 2020

[3] Artigo 6º do Código Civil de 2002

[4] Conforme Artigo 611 do Código de Processo Civil

Excepcionalmente, em razão da pandemia da Covid-19, foi publicada a Lei no. 14.010, de 10 de junho de 2020, dilatando o termo inicial para 30 de outubro de 2020, caso a sucessão tenha sido aberta a partir de 1º de fevereiro de 2020: “Art. 16. O prazo do art. 611 do Código de Processo Civil para sucessões abertas a partir de 1º de fevereiro de 2020 terá seu termo inicial dilatado para 30 de outubro de 2020. Parágrafo único. O prazo de 12 (doze) meses do art. 611 do Código de Processo Civil, para que seja ultimado o processo de inventário e de partilha, caso iniciado antes de 1º de fevereiro de 2020, ficará suspenso a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020

[5] O ITCMD, conforme artigo 155, I da CF/88, tem por fato gerador 2 eventos: morte e doação. Este artigo está limitado a alguns pontos decorrentes do evento morte.

[6] Exemplo: a alíquota pode variar de um Estado para o outro, observado o limite máximo de oito por cento, conforme estabelecido pela Resolução 9 de 2002 do Senado Federal

[7] Os artigos 9º e 13 da Lei no. 10.705/00 definem a base de cálculo do ITCMD em consonância com o artigo 38 do Código Tributário Nacional.

[8] Artigo 16 do RITCMD/02, com a redação dada pelo Decreto no. 55.002, de 09.11.2009.

[9] TJSP; 5ª Câmara de Direito Público, Rel. Heloísa Martins Mimessi Apelação/Remessa Necessária 1012305-10.2018.8.26.0053, j. 10.09.2018.

[10] Projeto de Lei nº 250/2020 – Altera a Lei nº 10.705, de 28 de dezembro de 2000, que dispõe sobre o Imposto sobre a Transmissão “Causa Mortis” e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos – ITCMD visando à mitigação dos efeitos da pandemia do novo coronavírus – Covid-19 no âmbito do estado de São Paulo.

[11] Projeto de Lei no. 529/2020: Estabelece medidas voltadas ao ajuste fiscal e ao equilíbrio das contas públicas e dá providências correlatas.

[12] TJSP, Turma Especial – Público – Rel. Des. Burza Neto, j. 23.05.19, Processo Paradigma 2243516-62.2017.8.26.0000. Tese firmada: “Fixaram a tese jurídica da base de cálculo do ITBI, devendo ser calculado sobre o valor do negócio jurídico realizado e, se adquirido em hastas públicas, sobre o valor da arrematação ou sobre o valor venal do imóvel para fins de IPTU, aquele que for maior, afastando o valor de referência.”

[13] “Paciência”, do álbum Na Pressão, de Lenine, 1999 BMG Brasil Ltda, compositor Dudu Falcão.

Fonte: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/women-in-tax-brazil/pandemia-e-o-itcmd-a-vida-nao-para-13112020

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