O fato gerador do IR e a avaliação a valor justo na redução de capital
A REALIZAÇÃO DA RENDA E AS MANIFESTAÇÕES DE RIQUEZA EVIDENCIADAS PELA CONTABILIDADE NESTE TIPO DE OPERAÇÃO
Pretende-se tratar neste breve texto a tributação na operação de redução de capital com entrega aos sócios/acionistas de ativos que foram contabilizados por meio de avaliação a valor justo (AVJ), buscando-se verificar se esta situação encontraria óbice na regra matriz de incidência do imposto sobre a renda.
Com efeito, o Pronunciamento Contábil Técnico CPC 46 define o valor justo como o “preço que seria recebido pela venda de um ativo ou que seria pago pela transferência de um passivo em uma transação não forçada entre participantes do mercado na data da mensuração”.1
Logo se percebe que a aludida figura cuida de um instrumento da contabilidade para mensurar a realidade econômica do patrimônio de uma empresa.
Este instrumento de mensuração patrimonial decorre dos padrões contábeis internacionais (International Financial Reporting Standards – IFRS) que foram introduzidos no Brasil por meio da Lei Federal nº 11.638 de 2007, no âmbito da legislação societária, de modo a permitir que as empresas brasileiras avaliem seus ativos ao valor justo praticado no mercado.
Tal marco legal foi importante para o Brasil, no sentido de aproximar nosso mercado aos padrões internacionais, e de deixá-lo mais transparente e acessível ao investimento externo. Isso porque, como país de cultura jurídica – e, consequentemente, contábil – influenciada pelo Direito Romano, o Brasil sempre tendeu para o reconhecimento de ativos na contabilidade apenas quando da aquisição da efetiva propriedade pela empresa cujo patrimônio é objeto de avaliação, bem como pela sua avaliação ao custo histórico de aquisição. 2
Assim, tal forma de avaliação – digamos mais arcaica – afastava de certo modo a avaliação das empresas brasileiras, em termo de linguagem contábil, do mercado exterior e da realidade dinâmica de alguns mercados de ativos importantes (como é o financeiro e de capitais, e.g). Aliás, é diante desta realidade econômica que o IFRS dá maior importância à essência econômica tida na relação entre empresa avaliada e seus ativos, do que com a sua propriedade jurídica; mensurando, para tanto, um ativo com base em seu valor justo.3
Feita esta breve digressão acerca da razão de ser da AVJ para fins de mensuração patrimonial das empresas, cabe-nos agora explanar acerca do tratamento fiscal dado a esta realidade econômico-contábil, especificamente no que se refere à operação de redução de capital com entrega de ativos aos sócios ou acionistas, a título de devolução da proporção reduzida que havia sido integralizada.
A operação societária em análise encontra fundamento legal nos artigos 1.081 a 1.084 do Código Civil (CC), para as sociedades limitadas; bem como nos artigos 173 e 174 da 6.404/1976 (Lei das S. A.), para as sociedades anônimas. Em suma, pode ocorrer em situações de excesso de capital (hipótese em que poderá ser realizada a redução quando o montante é superior ao necessário para o exercício da atividade objeto da empresa), ou então na hipótese de perdas irreparáveis para a sociedade (baseada no saldo da conta “lucros e prejuízos acumulados” do balanço de encerramento do exercício).
Assim, diante destas hipóteses, a sociedade reduz seu capital social, diminuindo seu patrimônio, transferindo a titularidade deste excesso de ativos, por meio de alienação destes bens em favor de seus sócios ou acionistas.
Seja como for, para esta operação, a Lei nº 9.249 de 1995 prevê em seu artigo 22 tanto a possibilidade de se devolver a participação societária em ativos avaliados pelo “valor contábil” (leia-se: valor de custo histórico), ou de mercado (AVJ no momento da realização).
Assim, ocorrendo a devolução mediante de entrega de bens a valor contábil, não há tributação para a pessoa jurídica que aliena o bem, tampouco para o acionista ou sócio que o recebe na proporção de sua participação societária.
Isso porque, neste caso, apesar de não estarmos diante de uma alienação a título gratuito (porquanto se está devolvendo aos sócios parte do que eles haviam integralizado na sociedade, na proporção do capital reduzido), a operação é neutra tributariamente, por possuir natureza permutativa.
Doutro bordo, para as operações realizadas a valor de mercado, o artigo 22, § 1º da Lei nº 9.249 de 1995 determina que deverá ser oferecida à tributação pelo IRPJ e pela CSLL a diferença entre o valor contábil (custo histórico) e o valor da alienação (valor de mercado).
Ocorre que, como salientado na introdução deste texto, os padrões contábeis IFRS introduzidos na legislação brasileira por meio da Lei nº 11.638 de 2007 (que instituiu a avaliação a valor justo dos bens no balanço de abertura) abriram mais de uma interpretação para os efeitos fiscais decorrentes da operação de redução de capital com entrega de ativos.
Neste passo, a lacuna interpretativa se dá para os casos em que os bens mensurados na contabilidade da sociedade por meio de AVJ (em razão das normas tributárias e das novas imposições contábeis) são alienados aos sócios/acionistas, a título de redução de capital, pelo valor contábil, como permite o artigo 22 da Lei nº 9.249 de 1995.
Deveria a AVJ destes ativos constantes anteriormente na contabilidade do contribuinte ser considerada no valor da alienação, para que esta fosse tratada como ganho tributável pela sociedade que efetuou a redução de capital?
Para buscar responder a inquietação objeto do presente texto, relevante mencionar os artigos 13 e 14 da Lei nº 12.973 de 2014 que impuseram a neutralidade fiscal da AVJ, para a sua não tributação no lucro real, desde que observados os procedimentos de controle contábeis em subcontas próprias, conforme inclusive regulamenta os art. 41, 97 e 98 da Instrução Normativa nº 1.700 de 2017.
Isto é, mesmo que haja a contabilização da AVJ, esta é neutralizada fiscalmente, por meio de controle em subconta específica, o que impede sua tributação pelo lucro real ou pelo resultado ajustado.
Seguindo esta ratio, o artigo 26 da referida Lei nº 12.973 de 2014 determina que, por exemplo, para as operações de fusão, aquisição ou cisão, (que não implicam alienação, mas em sucessão universal) estes ajustes vão ter o mesmo tratamento na sucessora. Ou seja, cuidam de operações neutras, sem tributação.
Entretanto, a redução de capital não encontra disciplina específica no texto da Lei nº 12.973 de 2014, como encontram as operações de reorganizações societárias supramencionadas.
Interpretando a situação em análise (redução de capital com entrega pelo valor de custo de ativos com AVJ), a Receita Federal do Brasil (RFB) já se manifestou por meio de Solução de Consulta COSIT nº 415 de 2017, com a interpretação de que o “valor contábil” de um ativo (no caso específico, tratava-se de um imóvel) inclui o ganho decorrente da AVJ, controlado em subconta vinculada ao bem e, quando houver a transferência efetiva da titularidade destes ativos ao sócios na operação de redução de capital, o aumento do valor do ativo, anteriormente excluído da tributação pelo lucro real e do resultado ajustado (nos termos da Lei nº 12.973 de 2014) deverá ser tributado nas bases do IRPJ e CSLL, mesmo que a realização da alienação tenha se dado pelo valor de custo.
Entretanto, entendemos que esta interpretação manifestada pela RFB extrapola delimitação legal para a hipótese de incidência do Imposto sobre a Renda, além de restringir a eficácia do artigo 22 da Lei nº 9.249 de 1995.
Conforme antecipamos de forma introdutória, a AVJ dos ativos de uma entidade busca aferir a realidade econômica de seu patrimônio, que seja condizente com aquela praticada no mercado.
Ou seja, adianta-se contabilmente um acréscimo no valor daquele ativo, mesmo antes que, juridicamente, o patrimônio da sociedade sofra um acréscimo.
Mas, muitas vezes, pode ocorrer do AVJ não corresponder com a realidade econômica e patrimonial daquele ativo. Por exemplo: uma indústria é proprietária de um imóvel que utiliza como planta industrial para fabricar seus produtos. Neste caso, o CPC 46 determina que a mensuração a valor justo deste imóvel deve ser feita com base no seu “highest and best use” (melhor uso possível).
Ou seja, o imóvel será avaliado como se estivesse sendo utilizado para um empreendimento imobiliário, por exemplo (melhor uso econômico possível daquele ativo), o que é muito diferente da sua realidade (um imóvel utilizado como planta industrial e não tão valioso no mercado quanto um terreno a ser utilizado em um empreendimento).
Assim, o ponto fulcral desta questão – para fins de tributação – é o seguinte: tal metodologia contábil que foi recepcionada pelo Direito brasileiro permitiria a incidência do IRPJ, de acordo com sua regra matriz? Mais. No caso de ativos com AVJ que são alienados a valor de custo aos sócios ou acionistas, a título de redução de capital social, seria possível a tributação deste AVJ?
Com efeito, o artigo 153, inciso III, da CF assegura à União a competência tributária para instituir imposto sobre a renda.
Tratando sobre a materialidade para esta incidência, com arrimo no artigo 146, inciso III, alínea “a” da CF, o artigo 43 do CTN diz que o imposto sobre a renda tem como fato gerador o acréscimo patrimonial decorrente da aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica da renda (produto do capital, do trabalho ou de ambos) e de proventos de qualquer natureza (demais acréscimos patrimoniais não decorrentes do capital ou trabalho).
Muito se interpreta na doutrina pátria quanto ao significado da descrição legal acima, para se identificar com segurança a ocorrência do fato tributável pelo Imposto sobre a Renda, isto é, a realização da renda.
Conceituando a realização da renda, Ricardo Mariz de Oliveira preleciona que:“(…) a realização da renda confunde-se com a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou de provento de qualquer natureza, pois essa aquisição marca o instante a partir do qual há acréscimo patrimonial e o imposto por ser exigido”.4
Neste sentido, o referido autor segue nos ensinando que “se dá a realização da renda quando o respectivo valor tiver entrado na disponibilidade do titular do patrimônio aumentado”.5
Abre-se aqui um parêntese para, em obediência ao artigo 110 do CTN, remetemo-nos ao conceito de patrimônio, extraído do artigo 91 do CC: “constitui universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico.”
Ora, o que se verifica do caso em análise é que o valor do AVJ que a RFB entende passível de tributação na realidade nunca entrou na disponibilidade do titular, não tendo este sofrido aumento em seu patrimônio, uma vez que a realização, quando da alienação do ativo (com a transferência de sua titularidade aos sócios), foi feita pelo valor de custo histórico.
Ou seja, não há acréscimo patrimonial algum, não havendo o que se falar em tributação direta neste caso. É simples: o ativo foi adquirido por X e alienado efetivamente pelo mesmo valor de X. A sociedade ficou no zero a zero e o AVJ neutralizado em subconta contábil jamais foi realizado, não podendo ser tributado.
Quanto à esta neutralidade fiscal, impende ainda dizer que a Lei nº 12.973 de 2014 assim a determinou em razão exatamente de respeitar as balizas impostas pelo artigo 43 do CTN, de modo que o valor justo controlado de forma apartada na contabilidade somente poderá ser oferecido à tributação caso realmente seja realizado. Ou seja, caso realmente entre no patrimônio do contribuinte.
Ademais, também merece reprimenda a interpretação ampliativa por parte da RFB do termo “valor contábil” constante no artigo 22 da Lei nº 9.249 de 1995, para abranger o AVJ controlado em subconta, mesmo que não realizado.
Isso porque, a melhor hermenêutica que se faz (tanto pela teleologia quanto pela égide histórico-evolutiva) é que, à época da Lei nº 9.249 de 1995, ainda estávamos sob a prática da velha contabilidade, na qual “valor contábil” significava simplesmente o valor de custo histórico.
Destarte, a referida legislação, ao possibilitar ao contribuinte reduzir o capital pelo “valor contábil”, sem a incidência do IRPJ e CSLL, visou assegurar que, sempre que a alienação se der a valor de custo, não haverá a aludida tributação, exatamente pelo fato de não haver realização de renda neste fato jurídico, muito embora a nova contabilidade tenha permitido a antecipação financeira deste lucro.
REFERÊNCIAS
CPC 46. Disponível em <
http://static.cpc.aatb.com.br/Documentos/395_CPC_46_rev%2012.pdf >.
OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008.
PINTO, Alexandre Evaristo. Avaliação a Valor Justo e a Disponibilidade Econômica de Renda. In: Roberto Quiroga Mosqueira e Alexsandro Broedel Lopes (coords.) Controvérsias Jurídico-Contábeis: Aproximações e Distanciamentos: Dialética, 2015. 6º vl.
RFB. Solução de Consulta nº 415 – Cosit de 8 de setembro de 2018. Disponível:<http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/anexoOutros.action?idArquivoBinario=45397>.
1 CPC 46 . Disponível em < < http://static.cpc.aatb.com.br/Documentos/395_CPC_46_rev%2012.pdf >
2 Este fenômeno cultural é explicado por Alexandre Evaristo Pinto em obra primorosa que trata com profundidade sobre a AVJ e a disponibilidade econômica para fins de IRPJ e CSLL: PINTO, Alexandre Evaristo. Avaliação a Valor Justo e a Disponibilidade Econômica de Renda. In: Roberto Quiroga Mosqueira e Alexsandro Broedel Lopes (coords.) Controvérsias Jurídico-Contábeis: Aproximações e Distanciamentos: Dialética, 2015. 6º vl. P. 27.
3 Idem.
4 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 372.
5 Op. Cit. P. 373