Desequilíbrio e oportunismo nos contratos

Desequilíbrio e oportunismo nos contratos

“Ainda que se reconheça a gravidade da covid-19, a lei não abriga o descumprimento geral a pretexto de um hipotético desequilíbrio contratual”

O ano que se encerrou parece dar sinais de fim só nos calendários. Para o direito privado, 2021 representa somente o início dos desafios que se lançarão sobre os contratos e que provavelmente ocuparão os tribunais por muitos anos. Revisitar o tema, portanto, parece não ser um exercício de retrospectiva mas, sim, de olhar para o presente e futuro.

Revisar ou terminar os vínculos contratuais supostamente desequilibrados pela pandemia foi tarefa que ocupou juízes e advogados, desafiando-se a segurança jurídica que deixava contratantes minimamente tranquilos de que os pactos seriam cumpridos. Locadores, prestadores de serviço, lojistas, escolas, creches, hospitais e tantos outros agentes econômicos buscaram a justiça contratual nos contratos. O desafio foi e será, nos próximos anos, saber quando desequilíbrio não se confunde com oportunismo.

A lei não abriga o descumprimento geral a pretexto de um hipotético desequilíbrio contratual

A possibilidade de revisar contratos desequilibrados, inclusive por catástrofes, ocupa os estudiosos do direito civil há séculos. Até aqui nenhuma novidade. Há 2.500 anos, o Código de Hamurábi (século XVIII a.C.) determinava que caso uma grande tragédia afetasse a colheita, o devedor de um empréstimo estaria a salvo do pagamento dos juros: “se alguém tem um débito a juros, e uma tempestade devasta o seu campo (…), ele não deverá (…) pagar juros por esse ano”. Santo Agostinho, mais tarde, pregaria que não seria infiel o descumpridor de uma promessa se sobreviessem condições abruptas que alterassem as circunstâncias originais.

O século XX impôs desafios à suposta igualdade intocável de forças entre os contratantes. O contrato deveria ser instrumento de distribuição da justiça social, promoção de riquezas, emprego e ferramenta de solidariedade social. A autonomia contratual ilimitada, que propunha poder-se celebrar qualquer tipo de contrato, com quem se pretendesse e sobre qualquer objeto, perdia protagonismo para o dirigismo contratual, que aos poucos permitia a revisão do conteúdo contratual. Daí podermos, hoje, na pandemia, admitir a revisão do conteúdo contratual, desafiando a suposição de que o contrato faz lei intocável entre as partes.

A recessão da 1ª Guerra Mundial (1914-1918) impôs reavivar-se a cláusula rebus sic stantibus na teoria dos contratos. Cuida-se de um princípio abstrato segundo o qual se acontecimentos extraordinários modificam radicalmente as condições nas quais o contrato foi formado e seu cumprimento torna-se excessivamente oneroso, o vínculo contratual pode ser terminado ou, preferencialmente, seu conteúdo revisado. Afinal, se as partes pudessem prever os efeitos catastróficos, talvez sequer celebrassem o contrato.

Os franceses, tradicionalmente contrários à revisão dos contratos, também se renderam à necessidade de revisar pactos. No último ano da 1ª Guerra Mundial promulga-se a Lei Failliot, consagrando no direito privado mundial o direito à revisão dos contratos. Estabelecia a lei que os contratos celebrados antes de 1º de agosto de 1914, cuja execução se prolongasse no tempo (pós guerra), poderiam ser extintos se, em virtude da guerra, o cumprimento das obrigações causasse prejuízos ao contratante em valor que excedesse muito a previsão que razoavelmente pudesse ser feita na celebração. A pandemia da covid-19 para a teoria contratual, portanto, é vinho novo para odres velhos.

No Brasil, a Constituição de 1988 impôs que todo negócio jurídico deva estar a serviço da dignidade da pessoa humana – fundamento da República – e da solidariedade social. O Código Civil brasileiro não ficou de fora: importou a teoria da imprevisão em diversos dispositivos que, em síntese, determinam a revisão dos pactos em tempos de extraordinariedade. E chegaram os tempos extraordinários.

No retrovisor, desenham-se numerosos processos pelos quais buscam as partes a resposta para um contrato supostamente desequilibrado pela pandemia. Não há dúvidas que o lojista que não pôde funcionar durante meses tem razoáveis argumentos jurídicos para requerer judicialmente a revisão do aluguel. Nem tão razoável, assim, seria a revisão do contrato de prestação de serviços escolares de uma escola que seguiu suas atividades on-line, por exemplo. Necessidade e malandragem podem se confundir na miríade de demandas judiciais que chegaram e que vão chegar ao Judiciário.

Ainda que se reconheça a gravidade da covid-19 para a economia, no campo dos contratos a lei não abriga o descumprimento geral a pretexto de um hipotético desequilíbrio contratual. A revisão é, como pensam os franceses, remédio excepcional. Em nome da segurança jurídica, o momento é de analisar cada relação contratual com olhos de lince e, no caso concreto, investigar o desequilíbrio e renegociar. Solidariedade, cooperação e fraternidade (e não oportunismo) são valores que a história de revisão dos contratos em cenários de guerra nos ensina para tempos de coronavírus.

Por João Quinelato

Fonte: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2021/01/12/desequilibrio-e-oportunismo-nos-contratos.ghtml

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